troca


Lidar com doenças complexas e não comuns é um desafio para todos os envolvidos. Mas vejo que um grande inimigo de todo processo é o ego da classe médica. Porque digo isso agora? 

Vou contar uma história:

Mais uma vez ressalto que não sou médica e minhas explicações são simplistas. Como sequela da Enterocolite Necrozante, Tom ficou com uma condição chamada “Síndrome do Intestino Curto”. Ele tinha 10cm de intestino delgado, quando o normal são metros. Por causa disso, ele ficava com um acúmulo de suco gástrico no estômago, o intestino por ser tão pequeno não dava “vazão” a todo esse líquido. Precisávamos oferecer um escape para todo esse líquido. Uma das primeiras formas adotada foi por meio de uma sonda colocada em seu nariz que ia até o estômago. Essa sonda atuava como um dreno, e os conteúdos iam para um saquinho que ficava pendurado perto do rosto. Cumpria a sua função, mas era super desconfortável. Primeiro por ser um tubo no nariz. Depois, vocês imaginam um saco pendurado perto do rosto? Que quando vocês dormem poderia se romper derramar o conteúdo na sua cabeça? Péssimo. Zero qualidade de vida. A fita da fixação da sonda machucando o rosto… Quanto mais ativo e esperto Tom ia ficando, mais ele ia arrancando aquela sonda. Acho que eu e você faríamos a mesma coisa. Cada vez que ele arrancava era um parto para passar uma nova.

Falavam na possibilidade de irmos para casa. Mas com essa sonda no rosto? Já tinha ouvido da “fama” dos profissionais de homecare – será que teriam habilidade de reposicionar caso ele arrancasse? Ou teríamos que correr para o hospital toda vez que acontecesse? E o fator estético? Quando falamos da vida de uma criança, sim isso deve ser levado em conta. Não tinha planos de deixar meu filho trancado dentro de casa, longe de tudo e todos. Será que não haveria uma alternativa?

Comecei a pesquisar. Me imergi num mundo novo: grupos de apoio, fundações, artigos médicos… E descobri: nos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido- muitas citações de pessoas que usavam uma gastrostomia com fins de drenagem. O que é a tal da gastrostomia? Nada mais que um tubo que colocado no estômago, mais comumente usado para alimentar alguém que por algum motivo não consegue ingerir alimentos por boca. Muuuuuuuitas pessoas relatando o uso desse método. Pronto, pensei. Taí a solução.

Voltei pro hospital e comecei com a minha saga de dar com a cara na parede. Conversava com os médicos e eles olhavam pra mim como se eu fosse um asno com a ideia mais boba dos últimos tempos. “Acho que não vai dar certo” “pode vazar suco gástrico e machucar a pele” “é arriscado”… Ninguém sequer considerava o que eu dizia. Um médico chegou a me dar uma verdadeira palestra sobre como a Gastro era para ALIMENTAR e não para drenar. Saí frustrada. Daí entendi uma coisa: o caso de Tom era raro. Poucos médicos conhecem essa condição. Hoje sei disso. Mas o que falta na verdade é a vontade de conhecer. Se tivessem ido atrás teriam visto que sim, a pratica de Gastro para drenagem é sim utilizada nesses casos. É questão de qualidade de vida. Não acho que ninguém tem que saber tudo. Mas ter o não como resposta só pq algo foge do seu repertório é cruel – principalmente se tratando de uma vida. 

Nessa linha, lembro de uma conversa com um médico que me disse que Antonio teria que ficar em casa, e não poderia fazer nada por causa do seu cateter central. Eu rebati, disse que há casos de crianças que fazem muitas coisas e vivem vidas relativamente normais mesmo tendo um cateter central. Ele disse que até andar de carro era arriscado. Gente: tem um grupo de apoio no Facebook à famílias de crianças com intestino curto. Sabe o que essas crianças fazem? (Com cateter central)? NADAM NA PISCINA. ACAMPAM. VIAJAM. O cara tava me falando que meu filho não poderia andar de carro. E esse cara não é um zé mané não. É um médico muito bem qualificado, recomendado e experiente. Só não tinha experiência para o Tom. Eu não tinha nenhuma pretenção de deixar meu filho preso num quarto, e deixava isso claro pra todos. Não queria apenas que ele sobrevivesse, queria que ele vivesse.

Depois que comecei a conversar com a mãe do Léo e conheci a última equipe que cuidou do Tom, percebi pessoas que realmente sabiam lidar com a condição dele. Uma condição traiçoeira, e todos estavam numa curva de aprendizagem. Sabiam conversar conosco. Sabiam “setar” expectativas. Dizer o que sabiam e o que não sabiam. 

Enfim, eu resolvi falar disso agora porque foi um aprendizado muito grande para mim. Falta humildade no mundo. Mas hoje temos uma coisa muito poderosa: uma rede de trocas. Pessoas nos quatro cantos do mundo trocando melhores práticas. Antes eu achava que isso só ia me servir para me dar dicas de que banda nova ouvir… Agora eu sei da luta de tantas outras famílias. E quanto mais a gente compartilha, mais estamos multiplicando conhecimento. Vamos continuar dividindo. Por causa do Tom comecei a fazer isso – por ele vou continuar.

3 pensamentos sobre “troca

  1. Pois é, cada vez que leio um texto seu, aumenta a minha certeza de que estas suas lembranças sobre a evolução dessa doença traiçoeira tem sido um bálsamo na vida de todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente com um pequenino acometido por ela. Só de pensar que o problema enfrentado está sendo (ou foi) vivido por tantas famílias, isso ameniza a dor, a angústia e a sensação de parecer um caso único, perdido na imensidão desse universo. As pessoas vão descobrindo que outros também vivem os problemas e as pequenas (grandes) vitórias do dia a dia. E só isto já dá um valor muito especial aos seus depoimentos. Parabéns, pela sua coragem e por todo esse amor que transborda e invade outras vidas. Deus a abençoe. E viva o Tom !

    Gostar

Deixe um comentário